segunda-feira, 4 de julho de 2011

A VIDA NO ESCURO

PAREDE

As paredes da sala ressoavam lembranças. Elas estavam lá, dependuradas. Todas as fotografias.
Fabiano e a mãe fazendo castelo de areia na praia. Quantos anos deveria ter? Cinco, no máximo seis. A mãe era linda. Usava um maiô inteiro azul. Azul como o céu da fotografia. Tinha a pele rosada, bronzeada pelo sol de janeiro. Ele, loirinho, sorriso maroto com o canto dos lábios, a cabeça inclinada próxima ao braço da mãe. Deixara os pequenos olhos azuis quase fechados, tentando amenizar a luz do sol que batia em sua face.
Fabiano entre os irmãos. O braço de um por cima do ombro do outro. Esta tinha sido logo após o jogo, no dia em que se tornara campeão. Era muito bom no vôlei. Sabia disso. Marcelo e Lídia haviam saltado da arquibancada para beijá-lo no momento em que o juiz apitara o final da partida. Alguém fotografara os três, não lembrava direito quem. Conseguira a foto com o professor de Educação Física.
— Você merece — ele disse. — Fica como um presente meu.
Fabiano estendeu a mão e pegou a fotografia. Já ia saindo, quando o professor o chamou de volta.
— Você é muito bom. Invista nisso.
Fabiano sorriu.
— Tá certo, professor.
Colocou a foto num quadro, juntando às outras mais tarde, na parede da sala. Tinha então quatorze anos. Não fazia muito tempo. Dois anos, não mais que isso.
Fabiano e o pai abraçados. Lídia batera a foto. Estavam todos na piscina da chácara, ele e o pai tomando conta do churrasco. A irmã tinha pedido para os dois fazerem uma pose. De um lado, o pai abraçava Fabiano; do outro, segurava um espeto de carne.
Fabiano e Rosana. Um de frente para o outro. Olhos fechados, lábios delicadamente colados. Era a lembrança que mais lhe doía.
Rosana era meiga, o rosto miúdo. Os olhos castanhos, pequenos e redondos, conferiam-lhe o olhar de uma garotinha frágil, indefesa. Quanto engano. Se assim fosse, ela não teria dito tudo o que dissera, todas aquelas palavras. Tinha sido dura, sim. Cruel, Fabiano pensou. Culpado, Fabiano sentiu-se. Um nada.
Fabiano passou a mão trêmula pelo rosto de Rosana. Deslizou-a pelo vidro do retrato até encostá-la no lábio da menina. O calor daquele beijo quase ali. Na ponta dos dedos. O quadro se mexeu, ficou torto, por muito pouco não caiu.
Piscou duro por duas vezes e novamente se deteve na parede de memórias. Tentou contar. Quantas memórias havia ali? Quinze? Vinte? Quarenta? Os quadros estavam se duplicando, triplicando à sua frente. Sua visão tornava-se embaçada outra vez.
Cambaleou ao aproximar-se da parede para enxergar melhor e esbarrou o braço no quadro em que beijava Rosana. O quadro caiu. Antes que Fabiano caísse junto, ainda pôde ouvir o vidro se quebrando. O som do estilhaço era o próprio som da sua vida. Destruída.
De nada mais lhe adiantavam as fotografias. Nem Rosana, nem ninguém. Agora era tarde. Fabiano estava morto.

(1º capítulo do livro "A vida no escuro", Editora Saraiva)

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