terça-feira, 4 de setembro de 2018

segunda-feira, 22 de julho de 2013

FIOS E NÓS - TRECHO

Lia sentiu-se a pessoa mais estranha do mundo. Desceu do carro estacionado em frente à casa amarela de portão branco e mudou apenas dois ou três passos, sem a menor pressa de avançar um pouco mais. Deu uma longa espiada ao redor, até onde a vista alcançava. Tinha o olhar arisco de um pássaro assustado, uma estranheza que lhe pesava o corpo, um descontentamento. O que viria pela frente? O que poderia vir?  

João Carlos e Maria Tereza retiravam a bagagem do porta-malas, entusiasmados. Tanto, que mal paravam de falar, uma tagarelice. Lia mirou os dois por um momento, grudou os olhos naquela alegria que não era sua, só deles. Será que a enxergavam?

A garota baixou a cabeça, agora prestando atenção em si mesma. Subiu um dos braços que estavam junto ao corpo e, lentamente, foi passando a mão pela barriga algumas vezes.

De novo isso?, pensou.

Então foi ficando irritada, nervosa e de mau-humor, tudo ao mesmo tempo, porque por mais que tentasse, por mais que quebrasse a cabeça de tanto pensar, não conseguia compreender absolutamente nada. Desconfio que era o tipo da pessoa que detestava não compreender direito as coisas.  

Levou um susto ao ouvir o barulho do porta-malas se fechando. Estava tão distraída tentando entender o que é que essas coisas esquisitas estão fazendo dentro de mim, droga!?, que aquele baque fez seu corpo estremecer.

Lia virou de lado. O pai e a mãe vindo em sua direção. Equilibrando bolsas, malas, travesseiros.  

- Vem logo, Lia! – chamou Maria Tereza ao se aproximar. – Está esperando o quê? Anda.

Um carro passou. Uma bicicleta. Um menino a pé.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A MELHOR BANDA DO MUNDO - TRECHO

1. Hora do almoço

Assim que desceu da van, Ana Gabriela correu até a entrada do prédio e foi logo empurrando a grade do portão. Fechado, obviamente. Respirou fundo, soltando o ar de uma só vez, numa clara mistura de frustração e impaciência, e em seguida olhou a janela por onde era possível avistar o seu Nílson. Justamente naquela hora, o porteiro resolveu falar ao telefone e não prestar atenção em mais nada que estivesse acontecendo do lado de fora. Incrível.
– Ô seu Nílson!
Ao ouvir seu nome, o senhor de barba bem feita, rosto magro, testa comprida com duas belas entradas devido a uma calvície que começara cedo, afastou-se um pouco do aparelho e deu uma espiada. Sorriu, simpático.
– Oi, Ana!
– Abre logo, seu Nílson! Tô com pressa!
Ele fez um sinal com a cabeça e apertou o botão.
– Finalmente!
Ana Gabriela subiu os degraus de dois em dois. Ao passar pelo porteiro, disse um obrigada corrido, com os mesmos passos largos de quem está perdendo a hora ou algo semelhante. Seu Nílson desligou o telefone e respondeu com um grito:
– De nada!
Mas Ana Gabriela nem ouviu. Já estava dentro do elevador, fuçando na bolsa à procura da chave. Seu Nílson não conseguia entender como essa gente podia viver correndo o tempo todo. Pelo jeito, isso começava cedo. O porteiro balançou a cabeça de um lado para outro e voltou ao seu serviço.
Quando chegou ao terceiro andar, Ana Gabriela abriu a porta de seu apartamento no exato instante em que dona Lila abria a porta do dela. Que coincidência. Mais fora de hora.
– Oi, Ana!
Com a mão ainda grudada na maçaneta, a garota piscou os olhos devagar, deu um suspiro, e só então olhou para a vizinha que, aparentemente, encontrava-se de saída. Será que todo mundo tinha resolvido atrasá-la nesse dia? Justo nesse dia que estava mais do que ansiosa para chegar em casa?
– Oi.
– Tudo bem com você?
Num movimento rápido com a cabeça, a voz saindo sem muito disfarce, ela foi dizendo que sim, tudo bem. Não era um momento muito apropriado para ficar batendo papo. Pena que a dona Lila não percebeu.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

TEMPO DE ROSAS - TRECHO

ROSEIRAL

Pela manhã, assim que a porta da sala era aberta, a primeira coisa que entrava pelas narinas era o cheiro de terra molhada e flor. Bom de sentir. Não só sentir. Gostava de ver os respingos transparentes colados no veludo vermelho. Tomava jeito de admirador de obra de arte mesmo com aquele tamanhinho. Aquela cara de menino arteiro. Como resistir ao colorido tão intenso e perfumado sem chegar perto, sem tocar, sem roubar o momento para si?
 – Ai!
Wellinton pressionou o dedo indicador e a minúscula gota vermelha ganhou volume diante dos seus olhos atentos. Fez uma careta, algo entre dor e nojo. Sentia uma repulsa, sim, sangue era uma coisa nojenta. Quando se ralava nas brincadeiras podia aguentar tudo, marca roxa de batida, joelho esfolado, casca. Menos sangue.
 – Quantas vezes eu já disse? Fica longe daí, rosa tem espinho.
Wellinton limpou o dedo na bermuda e chacoalhou a mão diversas vezes. Deu um último sopro antes de ver o avô deitando a mangueira na terra, trocando passos na sua direção. Sem perder tempo, escondeu os braços atrás das costas, como se assim pudesse reverter o feito.
– Cadê?
Seu Clovis não esperou resposta, a pergunta não era para ser respondida, e foi logo tirando a pequena mão do esconderijo, vasculhando tudo a fim de descobrir algum espinho debaixo da pele.
– Você, hein, Wellinton?
O menino não ergueu a cabeça, só os olhos é que se moveram para cima e espiaram a cara zangada do avô. Sentia incômodo, claro, seu Clovis não tinha lá muita delicadeza com as mãos. Não, as mãos não eram mesmo delicadas, eram rudes, traziam a aspereza de quem vive lidando com a terra. Mesmo assim, Wellinton não disse nada. Não era bobo de levar mais uma bronca. Era tanto cuidado com o roseiral, ninguém podia encostar um dedo, que Wellinton tinha a impressão de que o lugar era sagrado. Inviolável, como tesouro que não se toca, mal se olha. Teria algo proibido lá? Escondido no meio das rosas vermelhas ou ainda enterrado naquele chão que o avô revirava todo santo dia sem se cansar?

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

CAMPANHA CONTRA A FALTA DE EDUCAÇÃO

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A VIDA NO ESCURO

PAREDE

As paredes da sala ressoavam lembranças. Elas estavam lá, dependuradas. Todas as fotografias.
Fabiano e a mãe fazendo castelo de areia na praia. Quantos anos deveria ter? Cinco, no máximo seis. A mãe era linda. Usava um maiô inteiro azul. Azul como o céu da fotografia. Tinha a pele rosada, bronzeada pelo sol de janeiro. Ele, loirinho, sorriso maroto com o canto dos lábios, a cabeça inclinada próxima ao braço da mãe. Deixara os pequenos olhos azuis quase fechados, tentando amenizar a luz do sol que batia em sua face.
Fabiano entre os irmãos. O braço de um por cima do ombro do outro. Esta tinha sido logo após o jogo, no dia em que se tornara campeão. Era muito bom no vôlei. Sabia disso. Marcelo e Lídia haviam saltado da arquibancada para beijá-lo no momento em que o juiz apitara o final da partida. Alguém fotografara os três, não lembrava direito quem. Conseguira a foto com o professor de Educação Física.
— Você merece — ele disse. — Fica como um presente meu.
Fabiano estendeu a mão e pegou a fotografia. Já ia saindo, quando o professor o chamou de volta.
— Você é muito bom. Invista nisso.
Fabiano sorriu.
— Tá certo, professor.
Colocou a foto num quadro, juntando às outras mais tarde, na parede da sala. Tinha então quatorze anos. Não fazia muito tempo. Dois anos, não mais que isso.
Fabiano e o pai abraçados. Lídia batera a foto. Estavam todos na piscina da chácara, ele e o pai tomando conta do churrasco. A irmã tinha pedido para os dois fazerem uma pose. De um lado, o pai abraçava Fabiano; do outro, segurava um espeto de carne.
Fabiano e Rosana. Um de frente para o outro. Olhos fechados, lábios delicadamente colados. Era a lembrança que mais lhe doía.
Rosana era meiga, o rosto miúdo. Os olhos castanhos, pequenos e redondos, conferiam-lhe o olhar de uma garotinha frágil, indefesa. Quanto engano. Se assim fosse, ela não teria dito tudo o que dissera, todas aquelas palavras. Tinha sido dura, sim. Cruel, Fabiano pensou. Culpado, Fabiano sentiu-se. Um nada.
Fabiano passou a mão trêmula pelo rosto de Rosana. Deslizou-a pelo vidro do retrato até encostá-la no lábio da menina. O calor daquele beijo quase ali. Na ponta dos dedos. O quadro se mexeu, ficou torto, por muito pouco não caiu.
Piscou duro por duas vezes e novamente se deteve na parede de memórias. Tentou contar. Quantas memórias havia ali? Quinze? Vinte? Quarenta? Os quadros estavam se duplicando, triplicando à sua frente. Sua visão tornava-se embaçada outra vez.
Cambaleou ao aproximar-se da parede para enxergar melhor e esbarrou o braço no quadro em que beijava Rosana. O quadro caiu. Antes que Fabiano caísse junto, ainda pôde ouvir o vidro se quebrando. O som do estilhaço era o próprio som da sua vida. Destruída.
De nada mais lhe adiantavam as fotografias. Nem Rosana, nem ninguém. Agora era tarde. Fabiano estava morto.

(1º capítulo do livro "A vida no escuro", Editora Saraiva)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

A LENDA DO CABEÇA DE CUIA

Contam que Crispim era um pescador que vivia da pesca nas águas do Rio Parnaíba e habitava as suas margens, nas imediações em que o rio recebe as águas do Rio Poti, na zona norte de Teresina. Morava com a mãe já velha e adoentada.
Certa vez, depois de passar um dia inteiro sem nada conseguir pescar, Crispim volta para casa cheio de frustração e revolta. Pede à mãe alguma coisa para comer e esta lhe serve o que pode: uma rala sopa de osso. Irritado, Crispim grita que aquilo é comida para cachorro e, em seguida, pega o osso e parte para cima da mãe, atingindo-a várias vezes.
Desesperado, o pescador sai correndo porta afora e joga-se nas águas do rio, enquanto a mãe, agonizando, lança-lhe uma maldição: haveria de se transformar num terrível monstro, que só descansaria quando lhe forem sacrificadas 7 virgens chamadas Maria.
Crispim vira o Cabeça-de-Cuia, que surge do fundo das águas para assustar as lavadeiras e ameaçar os pescadores que pesquem em excesso, além do que precisam. Dizem que, durante a noite, o Cabeça-de-Cuia se transforma num velho e sai vagando pelas ruas de Teresina.